domingo, 30 de maio de 2010

ARTIGO

Cad. Cedes, Campinas, vol. 26, n. 69, p. 163-184, maio/ago. 2006 163




Cristina Broglia Feitosa de Lacerda

A INCLUSÃO ESCOLAR DE ALUNOS SURDOS:

O QUE DIZEM ALUNOS, PROFESSORES E INTÉRPRETES

SOBRE ESTA EXPERIÊNCIA

CRISTINA BROGLIA FEITOSA DE LACERDA*

RESUMO: Este artigo focaliza uma experiência de inclusão de aluno

surdo em escola regular, com a presença de intérprete de língua de sinais.

Alunos, professores e intérpretes envolvidos foram entrevistados

e seus depoimentos analisados. Os dados indicam problemas que

ocorrem no espaço escolar, alguns identificados pelos entrevistados

como desconhecimento sobre a surdez e sobre suas implicações educacionais,

dificuldades na interação professor/intérprete e a incerteza

em relação ao papel dos diferentes atores neste cenário. Os depoimentos

apontam ainda dificuldades com adaptações curriculares e

estratégias de aula, exclusão do aluno surdo de atividades. Todavia,

tais aspectos são negligenciados, já que há um pressuposto tácito de

que a inclusão escolar é um bem em si. Pretende-se contribuir para a

reflexão acerca de práticas inclusivas envolvendo surdos, procurando

compreender seus efeitos, limites e possibilidades e buscando uma

atitude educacional responsável e conseqüente frente a este grupo.

Palavras-chave: Inclusão escolar. Surdez. Intérprete de Língua Brasileira

de Sinais.

SCHOOL INCLUSION OF DEAF STUDENTS: WHAT STUDENTS, TEACHERS

AND INTERPRETERS SAY ABOUT THIS EXPERIENCE

ABSTRACT: This paper focuses on the experience of deaf student

inclusion in a regular school, with the presence of sign language interpreters.

The students, teachers and interpreters involved were

interviewed and their statements were analyzed. These data describes

the problems occurring at school as ignorance on deafness

* Doutora em Educação e docente do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Curso

de Fonoaudiologia da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). E-mail:

cristinalacerda@uol.com.br

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A inclusão escolar de alunos surdos: o que dizem alunos, professores e intérpretes...

and its educational implications, difficulties in the professor/interpreter

interaction and uncertainty about the role of the different

actors involved. They also highlight difficulties with curricular

adaptations and class strategies, and the exclusion of the deaf

student from activities. Nevertheless, such aspects are disregarded

because it is tacitly assumed that school inclusion is good

in itself. We intend to contribute to a reflection about inclusive

practices involving the deaf, seeking to understand their effects,

limits and possibilities and looking for a responsible and coherent

educational attitude toward this group.

Key words: School inclusion. Deafness. Brazilian sign language interpreter.

Introdução

educação de pessoas surdas é um tema bastante preocupante. Pesquisas

desenvolvidas no Brasil e no exterior indicam que um número

significativo de sujeitos surdos que passaram por vários anos

de escolarização apresenta competência para aspectos acadêmicos muito

aquém do desempenho de alunos ouvintes, apesar de suas capacidades

cognitivas iniciais serem semelhantes. Uma evidente inadequação do sistema

de ensino é denunciada por estes dados, revelando a urgência de

medidas que favoreçam o desenvolvimento pleno destas pessoas.

No mundo todo, a partir da década de 1990, difundiu-se com força

a defesa de uma política educacional de inclusão dos sujeitos com necessidades

educativas especiais, propondo maior respeito e socialização efetiva

destes grupos e contemplando, assim, também a comunidade surda.

Houve um movimento de desprestigio dos programas de educação especial

e um incentivo maciço para práticas de inclusão de pessoas surdas em

escolas regulares (de ouvintes).

Desse modo, diversas têm sido as formas de realização da inclusão.

Todavia, é inegável que a maioria dos alunos surdos sofreu uma escolarização

pouco responsável. Este artigo pretende, então, a partir de uma experiência

de inclusão de aluno surdo em uma escola regular, com a presença

de intérprete de língua de sinais, focalizar e avaliar aspectos dessa

experiência do ponto de vista de alunos surdos e ouvintes, intérpretes e

professores implicados nesta vivência. Para tal, foram realizadas entrevistas

com estes sujeitos e analisados seus depoimentos.

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Surdez, linguagem e inclusão escolar

A linguagem é responsável pela regulação da atividade psíquica humana,

pois é ela que permeia a estruturação dos processos cognitivos. Assim,

é assumida como constitutiva do sujeito, pois possibilita interações

fundamentais para a construção do conhecimento (Vigotski, 2001). A linguagem

é adquirida na vida social e é com ela que o sujeito se constitui

como tal, com suas características humanas, diferenciando-se dos demais

animais. É no contato com a linguagem, integrando uma sociedade que

faz uso dela, que o sujeito a adquire. Já para as pessoas surdas, esse contato

revela-se prejudicado, pois a língua oral é percebida por meio do canal auditivo,

alterado nestas pessoas.

Assim, os sujeitos surdos pela defasagem auditiva enfrentam dificuldades

para entrar em contato com a língua do grupo social no qual

estão inseridos (Góes, 1996). Desse modo, no caso de crianças surdas, o

atraso de linguagem pode trazer conseqüências emocionais, sociais e

cognitivas, mesmo que realizem aprendizado tardio de uma língua.

Devido às dificuldades acarretadas pelas questões de linguagem, observa-

se que as crianças surdas encontram-se defasadas no que diz respeito

à escolarização, sem o adequado desenvolvimento e com um conhecimento

aquém do esperado para sua idade. Disso advém a necessidade de elaboração

de propostas educacionais que atendam às necessidades dos sujeitos

surdos, favorecendo o desenvolvimento efetivo de suas capacidades.

Partindo do conhecimento sobre as línguas de sinais, amplamente

utilizadas pelas comunidades surdas, surge a proposta de educação bilíngüe

que toma a língua de sinais como própria dos surdos, sendo esta, portanto,

a que deve ser adquirida primeiramente. É a partir desta língua que

o sujeito surdo deverá entrar em contato com a língua majoritária de seu

grupo social, que será, para ele, sua segunda língua. Assim, do mesmo

modo que ocorre quando as crianças ouvintes aprendem a falar, a criança

surda exposta à língua de sinais irá adquiri-la e poderá desenvolver-se, no

que diz respeito aos aspectos cognitivos e lingüísticos, de acordo com sua

capacidade. A proposta de educação bilíngüe, ou bilingüismo, como é

comumente chamada, tem como objetivo educacional tornar presentes

duas línguas no contexto escolar, no qual estão inseridos alunos surdos.

Discutir a educação de surdos implica discutir também o tema inclusão

escolar, tratado mundialmente. Na década de 1990, muitos países

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assumiram a inclusão como tarefa fundamental da educação pública e

diferentes tentativas foram colocadas em prática buscando viabilizá-la.

Estudiosos como Bunch (1994), Cohen (1994) e Kirchner (1994), no

exterior, e Silveira Bueno (1994), Massota (1996) e Sassaki (1997), no

Brasil, entre outros, argumentam que todos os alunos devem ter as mesmas

oportunidades de freqüentar classes regulares próximas à sua moradia,

defendem a necessidade de um programa educacional adequado às

capacidades dos diferentes alunos, e que promova desafios a todas as crianças

atendidas. Destacam também a importância de oferecimento de

suporte e assistência às crianças com necessidades especiais e aos professores,

para que o atendimento seja o melhor possível.

A defesa deste modelo educacional se contrapõe ao modelo anterior

de educação especial, que favorecia a estigmatização e a discriminação. O

modelo inclusivo sustenta-se em uma filosofia que advoga a solidariedade

e o respeito mútuo às diferenças individuais, cujo ponto central está na

relevância da sociedade aprender a conviver com as diferenças. Contudo,

muitos problemas são enfrentados na implementação desta proposta, já

que a criança com necessidades especiais é diferente, e o atendimento às

suas características particulares implica formação, cuidados individualizados

e revisões curriculares que não ocorrem apenas pelo empenho do professor,

mas que dependem de um trabalho de discussão e formação que

envolve custos e que tem sido muito pouco realizado.

A inclusão apresenta-se como uma proposta adequada para a comunidade

escolar, que se mostra disposta ao contato com as diferenças,

porém não necessariamente satisfatória para aqueles que, tendo necessidades

especiais, necessitam de uma série de condições que, na maioria

dos casos, não têm sido propiciadas pela escola.

Antia e Stinson (1999) assumem a tarefa de confrontar diversos

estudos sobre a inclusão, ilustrando a evolução das discussões nesta área.

Referem-se a várias experiências de inclusão de crianças surdas, nas quais

a almejada integração social e acadêmica não ocorre efetivamente. O problema

central, segundo os estudos, é o acesso à comunicação, já que são

necessárias intervenções diversas (boa amplificação sonora, tradução simultânea,

apoio de intérprete, entre outros), que nem sempre tornam

acessíveis os conteúdos tratados em classe. A dificuldade maior está em

oportunizar uma cultura de colaboração entre alunos surdos e ouvintes,

e que professores e especialistas que participam da atividade escolar constituam

uma equipe com tempo reservado para organização de atividaCad.

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des, trabalhando conjuntamente numa ação efetiva de proposição de atividades

que atendam às necessidades de todos os alunos. Outro ponto

abordado é a necessidade de participação de membros da comunidade

surda na escola, favorecendo o desenvolvimento de aspectos da identidade

surda dessas crianças. Antia e Stinson (op. cit.) argumentam que uma

inclusão nestes moldes pode efetivamente beneficiar todos os alunos envolvidos,

mas esta não é freqüentemente desenvolvida.

As reflexões apresentadas referem-se à realidade de diversos países

que, rompendo com as premissas da medicalização ou da segregação

e buscando uma escola para todos, discutem modelos de educação

inclusiva capazes de atender às diferenças. Entretanto, vários destes estudos,

realizados em países do primeiro mundo, com condições gerais

de educação satisfatórias, indicam dificuldades de implantação dessas

propostas, que são definidas legalmente de forma ideal, mas que na

prática são de difícil implementação.

Refletindo sobre aspectos da inclusão no Brasil

O movimento da chamada educação inclusiva, que emerge apoiado

pela Declaração de Salamanca1 (1994), defende o compromisso que

a escola deve assumir de educar cada estudante, contemplando a pedagogia

da diversidade, pois todos os alunos deverão estar dentro da escola

regular, independente de sua origem social, étnica ou lingüística.

Assim, de acordo com Mazzota (1996), a implementação da inclusão

tem como pressuposto um modelo no qual cada criança é importante

para garantir a riqueza do conjunto, sendo desejável que na classe regular

estejam presentes todos os tipos de aluno, de tal forma que a escola

seja criativa no sentido de buscar soluções visando manter os diversos

alunos no espaço escolar, levando-os a obtenção de resultados

satisfatórios em seu desempenho acadêmico e social.

A inclusão escolar é vista como um processo dinâmico e gradual,

que pode tomar formas diversas a depender das necessidades dos alunos,

já que se pressupõe que essa integração/inclusão possibilite, por

exemplo, a construção de processos lingüísticos adequados, de aprendizado

de conteúdos acadêmicos e de uso social da leitura e da escrita,

sendo o professor responsável por mediar e incentivar a construção do

conhecimento através da interação com ele e com os colegas.

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Botelho (1998) e Lacerda (2000), entre outros autores, alertam

para o fato de que o aluno surdo, freqüentemente, não compartilha uma

língua com seus colegas e professores, estando em desigualdade lingüística

em sala de aula, sem garantia de acesso aos conhecimentos trabalhados,

aspectos estes, em geral, não problematizados ou contemplados pelas

práticas inclusivas.

Laplane (2004) argumenta que acreditar que valores e princípios da

educação inclusiva sejam capazes de promover instituições mais justas do

que aquelas que fundamentaram a segregação, compreender que o discurso

em defesa da inclusão se constituiu historicamente como oposto ao da

segregação e, nesse contexto, reconhecer a importância de destacar as vantagens

da educação inclusiva não pode ocultar os problemas todos que esta

mesma “educação inclusiva” impõe. A autora defende que a questão central

dos ideais da educação inclusiva se confronta com a desigualdade social

presente no Brasil e em outros paises em desenvolvimento.

(...) A análise das tendências que marcam o processo de globalização não deixa

dúvidas quanto aos valores que privilegia e aos modos como se organiza.

No contexto do acirramento das diferenças sociais provocado pelas tendências

globalizantes, pela concentração de riqueza e pelos processos que a

acompanham (redução do emprego, encolhimento do Estado etc.), a

implementação de políticas realmente inclusivas deve enfrentar grandes problemas.

O “elogio da inclusão” apresenta a vantagem de arrolar argumentos para a

defesa das políticas inclusivas. Mas para que seja realmente eficaz é preciso

que o discurso se feche sobre si próprio, aparecendo como uma totalidade

que não admite questionamentos. (Laplane, 2004, p. 17-18)

A fragilidade das propostas de inclusão, neste sentido, residem no

fato de que, freqüentemente, o discurso contradiz a realidade educacional

brasileira, caracterizada por classes superlotadas, instalações físicas insuficientes,

quadros docentes cuja formação deixa a desejar. Essas condições

de existência do sistema educacional põem em questão a própria

idéia de inclusão como política que, simplesmente, propõe a inserção dos

alunos nos contextos escolares presentes. Assim, o discurso mais corrente

da inclusão a circunscreve no âmbito da educação formal, ignorando as

relações desta com outras instituições sociais, apagando tensões e contradições

nas quais se insere a política inclusiva, compreendida de forma

mais ampla (Laplane, 2004).

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Sobre a pesquisa

A sala de aula focalizada como alvo desse estudo é uma quinta série

do ensino fundamental, de uma escola da rede privada, que conta

com 29 alunos ouvintes, uma criança surda e a presença de duas intérpretes

de língua de sinais que se revezam neste trabalho. A faixa etária

dos alunos varia de 10 a 12 anos, sendo 17 meninas e 12 meninos. A

criança surda é acompanhada, desde os 6 anos de idade, de intérprete

educacional contratada e paga pela família. Ela freqüenta esta escola há

um ano e meio; é a primeira experiência com aluno surdo e intérprete

em sala de aula desta instituição. A criança, com 12 anos de idade, é

portadora de surdez profunda bilateral, adquirida por meningite aos 3

anos de idade. Filha de pais ouvintes, não tem domínio do português

falado e é usuária da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS).

Quando da entrada do aluno surdo nesta escola, a direção se

mostrou interessada pelo processo de inclusão com a presença de intérprete

de LIBRAS e afirmou que seria feito um trabalho conjunto para

o sucesso da inclusão: coordenação, professores, intérprete, família,

fonoaudióloga e alunos. Todavia, após o início do ano letivo, poucos

encontros ocorreram, sendo inicialmente mensais, e durante a quinta

série só ocorreram encontros mediante a solicitação das intérpretes e

da fonoaudióloga. A escola julgava a inclusão bastante satisfatória e não

via necessidade de discussões.

Apesar das solicitações feitas pelas intérpretes e pela fonoaudióloga

do aluno surdo, não foram realizadas reuniões de planejamento para oferecer

mais informações sobre a surdez, sobre o aluno surdo, sobre a adequação

das estratégias em sala de aula e sobre o papel do intérprete aos

novos professores da quinta série. A direção escolar prometeu tais reuniões,

mas não as realizou, alegando falta de horário disponível.

Na quinta série focalizada, são oito os professores responsáveis pelas

diversas disciplinas ministradas: Português, Matemática, Inglês, Ciências,

Geografia, História, Educação Física e Artes. As aulas têm a duração

de 50 minutos. As dinâmicas de aula variam de acordo com cada

professor e com os conteúdos, mas há um predomínio de aulas

expositivas com uso preferencial do quadro negro como apoio para as explicações.

Eventualmente, são usados recursos como vídeos, mapas ou

transparências.

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Em geral, os alunos assistem e participam respondendo a perguntas

em aulas expositivas, mas com alguma freqüência são realizadas

atividades em grupo. Os grupos se alternam bastante e não têm uma

configuração estável.

O aluno surdo estava sempre acompanhado de uma das intérpretes

(que se revezavam em dias alternados da semana) e esta se sentava ao

seu lado, ou na frente da classe, dependendo do tipo de atividade proposta.

Na realidade brasileira, são poucas as pessoas com formação específica

para atuarem como intérpretes da LIBRAS. Tem crescido o número

de cursos oferecidos, todavia eles se concentram nos grandes centros, atingindo

um número restrito de pessoas. Desse modo, é difícil encontrar,

em cidades do interior, pessoas com formação específica como intérprete

da LIBRAS e que se disponham a atuar como intérprete educacional, já que

este trabalho exige dedicação de muitas horas semanais, com horários fixos.

Assim, as duas intérpretes entrevistadas foram pessoas que aceitaram

trabalhar nas condições necessárias ao trabalho escolar, tinham um

bom conhecimento da LIBRAS, interesse/capacitação para trabalhar no âmbito

pedagógico e disponibilidade de horários.

Entrevista e sujeitos entrevistados

Para o estudo, foi realizado um esclarecimento sobre objetivos e

procedimentos para: direção e coordenação da escola, professores, alunos

ouvintes, aluno surdo, famílias dos alunos ouvintes, família do aluno

surdo e intérpretes. As intérpretes foram entrevistadas separadamente,

cada uma em dia e horário previamente combinados, fora do

ambiente escolar. Mostraram-se interessadas em participar, especialmente

porque queriam conhecer melhor sua própria realidade de trabalho,

e não criaram dificuldades para a realização da entrevista.

Realizar a entrevista com os professores, entretanto, não foi tarefa

fácil. Foram marcados diversos encontros na própria escola, em horários

definidos por eles, já que alegaram não ter outro momento disponível

a não ser aquele em que estavam na escola. Todavia, mesmo

respeitando estes horários, o pesquisador não era atendido, por uma

série de motivos: esquecimento, reuniões marcadas ao improviso e outros

compromissos escolares, o que fez as entrevistas serem remarcadas

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muitas vezes. Ao final de várias tentativas, os próprios professores (aqueles

mais participantes de discussões que envolviam o aluno surdo) propuseram

que a entrevista fosse feita com dois deles, professora de português

e professor de história, juntos, e diante das dificuldades tal proposta

foi aceita.

Em relação aos alunos ouvintes, buscou-se sondar quais estariam

mais disponíveis para participar de uma entrevista a partir de sugestões

do aluno surdo, intérpretes e família do aluno surdo. Tais alunos foram

contatados, bem como suas famílias, e, depois de várias tentativas, uma

das alunas sugeriu que o pesquisador fosse até a casa dela, pois convidaria

uma outra colega de classe para que então fosse realizada a entrevista.

As alunas se mostraram à vontade e participativas e julgou-se que os dados

coletados foram bastante adequados aos propósitos da pesquisa.

O aluno surdo foi entrevistado pela pesquisadora e uma intérprete

(diferente daquelas que o seguem em sala de aula, porém sua conhecida),

para garantir que a comunicação em LIBRAS fosse satisfatória. A entrevista

foi filmada para possibilitar a transcrição adequada da LIBRAS.

As entrevistas, no geral, duraram em média uma hora e meia cada

uma; à exceção da entrevista com o aluno surdo, as demais foram gravadas

em áudio. Todas foram transcritas integralmente para posterior análise.

Professores

O fluxo geral dos depoimentos aponta para a satisfação dos professores

diante dos resultados dessa experiência, relatando que suas aulas

transcorrem normalmente; que as presenças do aluno surdo e intérprete

são facilmente assimiladas na rotina escolar; e que percebem um bom

relacionamento entre os alunos e um bom rendimento geral do aluno

surdo. Todavia, uma análise mais atenta do mesmo material revela paradoxalmente

a falta de preparação para esta prática, desinformação geral

acerca do argumento surdez e suas peculiaridades, ausência de planejamento

de ações coordenadas que levem em conta a presença do intérprete

e, talvez, o aspecto mais importante, a não consciência de que existem

muitos problemas ocorrendo neste espaço, que mereceriam atenção

e ações por parte dos professores.

Os professores referem-se a uma experiência que transcorre bem,

que não causa estranhamento e que, portanto, não demanda ajustes e

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pode ser mantida como está, porque os incômodos são mínimos e não

merecem maior cuidado. A realidade é vista apenas parcialmente,

esfumaçada, e isso parece garantir a tranqüilidade para o trabalho.

Porém, no próprio fluxo da entrevista os professores dão alguns sinais

de que percebem, ainda que de maneira tênue, que algo precisa ser

repensado: “Aquela história que nem maestro, a gente vê maestro erguer a

mão numa orquestra, pensa que é chegar lá na frente, um sinalzinho...”,

diz o professor de História referindo-se ao trabalho da intérprete, demonstrando,

ainda que fugazmente, perceber que há muito mais a ser compreendido.

Os depoimentos da professora de Português falam de suas dúvidas

e reflexões após o contato com informações mais aprofundadas sobre

língua de sinais e educação de surdos, também indicando que percebe que

há pontos obscuros que merecem ser repensados. Os depoimentos revelam

e escondem problemas presentes nesta prática, mas, de maneira geral,

os entrevistados referem-se à experiência como satisfatória.

Alunos ouvintes

Os depoimentos dos alunos ouvintes revelam que o aluno surdo

é acolhido pela classe, visto com respeito e que conta com a amizade

de vários companheiros. Entretanto, também revelam uma super valorização

destas relações, como se não houvesse problemas e como se tudo

se desenvolvesse satisfatoriamente.

As alunas entrevistadas falam de um ambiente ‘feliz’, no qual o

aluno é querido, tem boas relações, e que todos conhecem sinais que

são suficientes para uma comunicação eficiente. Neste ambiente, ele se

mostra um bom aluno e o seu trabalho com a intérprete é acolhido

sem dificuldades. Faz pensar em um ambiente tranqüilo, no qual não

existem problemas. Entretanto, nos mesmos depoimentos, é possível

perceber que a língua de sinais é vista como algo difícil, trabalhosa para

aprender e que, às vezes, é um pouco chata; que o amigo surdo é ‘legal’,

mas faz coisas estranhas que, freqüentemente, não são compreendidas

e que se espera que ele aprenda a falar e fale.

Configura-se um paradoxo entre aquilo que parece importante que

se acredite e aquilo que é efetivamente vivenciado. A relação entre alunos

ouvintes e surdo não se revela sempre difícil, há aceitação e compreensão

de suas características, mas não se revela sempre fácil, há dificuldades de

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relação, de conhecimento sobre a surdez e de aceitação de certas características.

Porém, os aspectos mais difíceis da relação são ocultados, aparecendo

apenas nas entrelinhas, percebidos como menos importantes. Há

um saldo geral positivo e isso é o que conta. Também entre as crianças

parece não haver estranhamento e apreensão em relação a essa experiência

nova, que permita uma visão mais realística do que ocorre.

Aluno surdo

A leitura da entrevista do aluno surdo faz pensar que ele tenha

uma compreensão particular de sua escolarização. Freqüentar uma classe

de ouvintes não é uma opção para ele, mas algo normal e o único

contexto escolar que conhece. Do mesmo modo, lhe parece normal ser

acompanhado quotidianamente por uma intérprete, pois durante toda

sua vida escolar teve ao seu lado alguém interpretando.

Em relação aos seus amigos, sabe que eles conhecem alguns sinais

e os reconhece como tendo domínio da língua de sinais, proporcionando

uma comunicação entre eles efetiva e sem maiores problemas. Reconhece

que seus professores não conhecem sinais, mas isso não traz problemas,

porque tem a intérprete ao seu lado que o ajuda em suas tarefas

escolares. Não parece se sentir sozinho ou isolado. Vive em uma ilha,

dentro de sua sala de aula, e isso lhe parece adequado; vê seu relacionamento

restrito às intérpretes e às poucas trocas dialógicas com os alunos

ouvintes como natural.

Entretanto, para aqueles que conhecem a vivência escolar entre

crianças ouvintes, as possibilidades de trocas entre alunos e professores e

a riqueza de informações que circulam quando se está em um grupo com

o qual se compartilha uma mesma língua, a situação do aluno surdo parece

insólita: em uma quinta série não conhece o nome dos amigos, não

se relaciona diretamente com os professores, tem apenas um interlocutor

efetivo no espaço escolar, está sempre acompanhado por um adulto, configurando

uma situação que não pode ser chamada de satisfatória. Ele,

provavelmente, por não conhecer outra realidade, mostra-se bem adaptado

a sua situação. Como não conhece algo diferente, acredita que esta

convivência seja plena e se satisfaz com ela. Cabe refletir se esta vivência

escolar é realmente plena e se este é o espaço educacional que se deseja

para os alunos surdos.

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Intérpretes de língua de sinais

As questões acerca do papel do intérprete educacional apontadas

nas entrevistas mostram que é preciso intensificar os estudos nessa área,

pois em vários recortes foi possível observar o quanto essa atuação é pouco

refletida e compreendida, o que determina dificuldades para esse trabalho.

Uma questão central é definir melhor a função do intérprete educacional;

figura desconhecida, nova, que, com um delineamento mais

adequado (direitos e deveres do intérprete, limites da interpretação, divisão

do papel de intérprete e de professor, relação do intérprete com

alunos surdos e ouvintes em sala de aula, entre outros), poderia favorecer

um melhor aproveitamento deste profissional no espaço escolar.

A literatura aponta que no contexto escolar, especialmente aquele

que envolve crianças mais novas, é impossível desempenhar um papel estritamente

de intérprete (Antia & Kreimeiyer, 2001). O intérprete participa

das atividades, procurando dar acesso aos conhecimentos e isso se

faz com tradução, mas também com sugestões, exemplos e muitas outras

formas de interação inerentes ao contato cotidiano com o aluno surdo

em sala de aula. Todavia, se este papel não estiver claro para o próprio

intérprete, professores, alunos e aluno surdo, o trabalho torna-se

pouco produtivo, pois se desenvolve de forma insegura, com desconfiança,

desconforto e superposições.

É preciso reconhecer que a presença do intérprete em sala de aula

tem como objetivo tornar os conteúdos acadêmicos acessíveis ao aluno surdo.

Entretanto, o objetivo último do trabalho escolar é a aprendizagem do

aluno surdo e seu desenvolvimento em conteúdos acadêmicos, de linguagem,

sociais, entre outros. A questão central não é traduzir conteúdos, mas

torná-los compreensíveis, com sentido para o aluno. Deste modo, alguém

que trabalhe em sala de aula, com alunos, tendo com eles uma relação estreita,

cotidiana, não pode fazer sinais – interpretando – sem se importar

se está sendo compreendido, ou se o aluno está aprendendo. Nessa experiência,

o interpretar e o aprender estão indissoluvelmente unidos e o intérprete

educacional assume, inerentemente ao seu papel, a função de também

educar o aluno. Isso é premente no ensino fundamental, onde se

atendem crianças que estão entrando em contato com conteúdos novos e,

muitas vezes, com a língua de sinais, mas deve estar presente também em

níveis mais elevados de ensino, porque se trata de um trabalho com finalidade

educacional que pretende alcançar a aprendizagem.

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A questão da falta de um planejamento conjunto, da falta de um

trabalho de equipe e de uma concepção mais clara do que signifique aceitar

um aluno surdo em sala de aula também foi trazida pelas intérpretes.

Elas se referem a tentar fazer o melhor possível num espaço adverso

e cheio de dificuldades de relação, já que muitas vezes o professor não

assume seu papel diante do aluno surdo, delegando funções a elas ou

propondo atividades que não fazem qualquer sentido para este aluno. Falam

de si mesmas como excluídas do processo educacional, à margem,

buscando fazer, apesar disso, o melhor possível para que o aluno surdo

desenvolva suas potencialidades no espaço escolar. Discussões constantes

sobre a tarefa de cada um no espaço inclusivo, atribuições e trocas de

percepções se mostram essenciais e são um primeiro passo para uma convivência

tranqüila e que possa trazer ganhos efetivos ao aluno surdo.

Seus depoimentos relevam ainda que tanto a escola quanto os professores

conhecem muito pouco sobre a surdez e suas peculiaridades, não

compreendendo adequadamente o aluno surdo, sua realidade e suas dificuldades

de linguagem etc.

Levantou-se também nas entrevistas a importância de haver um

espaço para atualização do aprendizado de língua de sinais por parte das

intérpretes, para discussões sobre o uso adequado desta língua no espaço

pedagógico. Esta é uma questão abordada em outras pesquisas e foco de

atenção em muitas experiências inclusivas (Napier, 2002). Todavia, no

Brasil, esta questão é percebida pelos intérpretes que realizam este trabalho,

mas pouco ou nada é feito para suprir esta necessidade.

Essas considerações indicam a importância de se realizarem estudos

direcionados para a inclusão de alunos surdos com inserção de intérpretes

de Língua Brasileira de Sinais em sala de aula, na tentativa de avaliar

como este processo vem ocorrendo, como já se faz em outros países,

e até mesmo avaliar os efeitos de tal processo nas séries iniciais de

escolarização.

Reflexões sobre a inclusão escolar do aluno surdo

A questão das dificuldades de comunicação dos surdos é bastante

conhecida, mas, na realidade brasileira, as leis (10.436, 24 de abril

de 2002, que dispõe sobre a língua de sinais brasileira, e mais recentemente

o Decreto 5626/05, que regulamenta as leis 10.098/94 e

176 Cad. Cedes, Campinas, vol. 26, n. 69, p. 163-184, maio/ago. 2006

Disponível em

A inclusão escolar de alunos surdos: o que dizem alunos, professores e intérpretes...

10.436/02 e orienta ações para o atendimento à pessoa surda) e este

conhecimento não têm sido suficientes para propiciar que o aluno surdo,

que freqüente uma escola de ouvintes, seja acompanhado por um

intérprete. Além disso, a presença do intérprete de língua de sinais não

é suficiente para uma inclusão satisfatória, sendo necessária uma série

de outras providências para que este aluno possa ser atendido adequadamente:

adequação curricular, aspectos didáticos e metodológicos, conhecimentos

sobre a surdez e sobre a língua de sinais, entre outros.

Assim, muitos dos aspectos da realidade escolar de inclusão apontados

neste estudo não são singulares, como pode parecer em princípio.

A presença de um intérprete de LIBRAS em escolas brasileiras é, sem dúvida,

algo ainda pouco comum. Contudo, a desinformação dos professores

e o desconhecimento sobre a surdez e sobre modos adequados de atendimento

ao aluno surdo são freqüentes. A prática de muitos anos de

acompanhamento de crianças surdas permite afirmar que, infelizmente,

a maior parte das inclusões escolares de surdos é pouco responsável. A

escola se mostra inicialmente aberta a receber a criança (também porque

há a força da lei que diz que a escola deve estar aberta à inclusão), discute

as características da criança no momento de sua entrada e, depois, a insere

na rotina, sem qualquer cuidado especial. Em geral, com o passar

do tempo, a criança parece bem, já que não apresenta muitos problemas

de comportamento, e todos parecem achar que está tudo certo: a) a escola

não se preocupa mais com a questão, porque se preocupar significaria

buscar outras ajudas profissionais (intérprete, educador surdo, professor

de apoio etc.), e a escola pública brasileira, em geral, não conta nem com

a equipe básica de educadores para atender as necessidades dos alunos

ouvintes; b) os professores, que percebem que o aluno não evolui, mas não

sabem o que devem fazer, por falta de conhecimento e preparo; c) os alunos

ouvintes, que acolhem, como podem, a criança surda sem saber bem

como se relacionar com ela; d) o aluno surdo, que, apesar de não conseguir

seguir a maior parte daquilo que é apresentado em aula, simula estar

acompanhando as atividades escolares, pois afinal todas aquelas pessoas

parecem acreditar que ele é capaz; e) a família, que sem ter outros

recursos precisa achar que seu filho está bem naquela escola.

Ao final de anos de escolarização, a criança recebe o certificado escolar

sem que tenha sido minimamente preparada para alcançar os conhecimentos

que ela teria potencial para alcançar (em muitos casos, termina

a oitava série com conhecimentos de língua portuguesa e

Cad. Cedes, Campinas, vol. 26, n. 69, p. 163-184, maio/ago. 2006 177

Disponível em

Cristina Broglia Feitosa de Lacerda

matemática compatíveis com a terceira série). Esta realidade é gravíssima

e tem se repetido no Brasil, a cada ano. Torna-se urgente intervir e modificar

estes fatos.

A presença de um intérprete de língua de sinais em sala de aula

pode minimizar alguns aspectos deste problema, em geral, favorecendo

uma melhor aprendizagem de conteúdos acadêmicos pelo aluno,

que teria ao menos acesso (se conhecesse a língua de sinais, ou pudesse

adquiri-la) aos conteúdos trabalhados. Todavia, este aluno continua inserido

em um ambiente pensado e organizado para alunos ouvintes.

Para que este ambiente se torne minimamente adequado às necessidades

de alunos surdos, são necessárias mudanças e adaptações que se encontram

distantes de serem realizadas.

O aluno surdo é usuário de uma língua que nenhum companheiro

ou professor efetivamente conhece. Ele é um estrangeiro que

tem acesso aos conhecimentos de um modo diverso dos demais e se

mantém isolado do grupo (ainda que existam contatos e um relacionamento

amigável). A questão da língua é fundamental, pois, sem ela, as

relações mais aprofundadas são impossíveis, não se pode falar de sentimentos,

de emoções, de dúvidas, de pontos de vista diversos. As entrevistas

revelam que a relação do aluno surdo com os demais se limita a

trocas de informações básicas, que são enganosamente “imaginadas por

todos” como satisfatórias e adequadas. Ele, por não conhecer outras experiências,

só pode achar que este ambiente em que vive é bom: tem

amigos, vai à escola todos os dias, é bem tratado e tem a intérprete.

Todavia, tudo isso se mostra precário, longe daquilo que seria desejável

para qualquer aluno de sua idade.

Outro ponto importante, no que tange às questões de desenvolvimento,

é que o aluno surdo, como qualquer criança que freqüenta o

ensino fundamental, está em processo de desenvolvimento de linguagem,

de processos identificatórios, de construção de valores sociais e

afetivos, entre outros. É na escola que as crianças aprendem ou aperfeiçoam

formas de narrar, de descrever, modos adequados de usar a linguagem

em diferentes contextos, ampliando seu conhecimento lingüístico,

e experimentam regras de convivência social, regras de formação

de grupo e de valores sociais fundamentais para a adaptação da vida

em sociedade. É também na escola que emoções e afetos são vividos de

forma mais aberta, menos protegida, propiciando sucesso, insucesso,

ciúmes, competição, raiva; sentimentos importantes de serem conheci178

Cad. Cedes, Campinas, vol. 26, n. 69, p. 163-184, maio/ago. 2006

Disponível em

A inclusão escolar de alunos surdos: o que dizem alunos, professores e intérpretes...

dos e exercitados para o convívio social. Além disso, é nesta etapa da

vida que os processos identificatórios se consolidam e o aluno surdo,

sozinho no ambiente escolar, em sua condição de surdez, pode, por isso

mesmo, enfrentar uma série de dificuldades.

Shaw e Jamienson (1997) discutem que os discursos de sala de

aula revelam papéis sociais e culturais nas interações que podem ser diferentes

em muitos aspectos daquilo que tratam normalmente os discursos

familiares. Assim, o discurso do professor guia a atenção dos alunos

para tarefas relevantes, avaliando suas respostas e sua adequação. Além

disso, muito do que é dito para outro aluno em uma explicação ou discussão

é ouvido pelo grupo e constitui um conhecimento adquirido, ainda

que não diretamente voltado para este ou aquele sujeito; neste ambiente,

onde um pergunta, outro responde e outro ouve, se constroem

muitas regras de conhecimento social e afetivo importantes para o desenvolvimento

da criança.

Nesse sentido, crianças surdas possuem estratégias de comunicação

muito peculiares, pois a maioria vem de lares ouvintes que não possibilitam

um desenvolvimento lingüístico no patamar das crianças ouvintes.

Assim, elas partem de uma exposição e de estratégias de linguagem

diferentes, estando expostas a um ambiente que usa simultaneamente

pistas visuais e auditivas, impondo a elas opções, dividindo sua atenção.

Em uma sala de aula para alunos ouvintes, isso se reproduz, já que o

professor passa as informações de acordo com aquilo que está acostumado,

sendo mais adequado aos ouvintes que às crianças surdas. Desse

modo, a criança surda está presente, mas está perdendo uma série de informações

fundamentais sobre questões de linguagem, sociais e afetivas

que lhe escapam justamente por sua condição de ser usuária de outra

língua, tendo acesso aos conteúdos apenas pela mediação do intérprete.

A criança surda tem um interlocutor único que usa uma linguagem filtrada,

escolar e própria para a tradução (Teruggi, 2003), sem outros modelos,

sem trocas, sem contato com tudo que circula entre coetâneos.

Trata-se de uma experiência restritiva, em um momento fundamental de

seu desenvolvimento, que precisa ser considerada.

A situação do aluno surdo incluído faz pensar no texto de Platão,

“O mito da caverna”, presente no Diálogo: A República.2

(...) homens vivendo numa caverna cuja entrada se abre para a luz em toda

a sua largura, com um amplo saguão de acesso. Os habitantes desta caverCad.

Cedes, Campinas, vol. 26, n. 69, p. 163-184, maio/ago. 2006 179

Disponível em

Cristina Broglia Feitosa de Lacerda

na têm as pernas e o pescoço amarrados de tal modo que não podem mudar

de posição e olhem apenas para o fundo da caverna, onde há uma parede.

Bem em frente da entrada da caverna existe um pequeno muro da

altura de um homem e, por trás desse muro, se movem homens carregando

sobre os ombros estátuas trabalhadas em pedra e madeira, representando

os mais diversos tipos de coisas. E lá no alto brilha o sol. A caverna também

produz ecos e os homens que passam por trás do muro falam de

modo que suas vozes ecoem no fundo da caverna (...). Se fosse assim, certamente

os habitantes da caverna nada poderiam ver além das sombras das

pequenas estátuas projetadas no fundo da caverna e ouviriam apenas o eco

das vozes. Entretanto, por nunca terem visto outra coisa, eles acreditariam

que aquelas sombras, que eram cópias imperfeitas de objetos reais, eram

a única e verdadeira realidade e que o eco das vozes seria o som real das

vozes emitidas pelas sombras (...).

Assim, o aluno surdo, seus companheiros e professores (como os entrevistados

neste estudo) parecem ver apenas as sombras e os ecos e não

compreendem que as relações escolares poderiam se dar de modo diferente.

Ainda, seguindo o mito criado por Platão:

Suponhamos, agora, que um daqueles habitantes consiga se soltar das

correntes que o prendem. Com muita dificuldade e sentindo-se freqüentemente

tonto, ele se voltaria para a luz e começaria a subir até a entrada

da caverna. Com muita dificuldade e sentindo-se perdido, ele começaria

a se habituar à nova visão com a qual se deparava. Habituando os

olhos e os ouvidos, ele veria as estatuetas moverem-se por sobre o muro

e, após formular inúmeras hipóteses, por fim compreenderia que elas

possuem mais detalhes e são muito mais belas que as sombras que antes

via na caverna, e que agora lhes parece algo irreal ou limitado. Suponhamos

que alguém o traga para o outro lado do muro. Primeiramente, ele

ficaria ofuscado e amedrontado pelo excesso de luz; depois, habituando-

se, veria as várias coisas em si mesmas; e, por último, veria a própria

luz do sol refletida em todas as coisas. Compreenderia, então, que estas

e somente estas coisas seriam a realidade e que o sol seria a causa de todas

as outras coisas.

Para ver e saber o que realmente se passa, como podem se dar as

relações em uma sala de aula entre alunos surdos e ouvintes, professores

e alunos que vivenciam esta experiência de inclusão precisariam

conhecer algo diverso, conhecer melhor a surdez e sua realidade, de

modo a refletir sobre o que têm vivido. “O mito da caverna” termina

dizendo que:

180 Cad. Cedes, Campinas, vol. 26, n. 69, p. 163-184, maio/ago. 2006

Disponível em

A inclusão escolar de alunos surdos: o que dizem alunos, professores e intérpretes...

(...) Mas ele se entristeceria se seus companheiros da caverna ficassem ainda

em sua obscura ignorância acerca das causas últimas das coisas. Assim,

ele, por amor, voltaria à caverna a fim de libertar seus irmãos do julgo da

ignorância e dos grilhões que os prendiam. Mas, quando volta, ele é recebido

como um louco que não reconhece ou não mais se adapta à realidade

que eles pensam ser a verdadeira: a realidade das sombras. E, então, eles

o desprezariam (...).

O texto de Platão pode iluminar alguns pontos das discussões

aqui apresentadas. Na situação da escola inclusiva, não são os alunos

surdos ou os alunos ouvintes os responsáveis por voltarem para a caverna

e tentarem convencer seus companheiros de que há uma outra realidade

possível de ser vivida, pois, afinal, são crianças e seria uma responsabilidade

bastante grande. Mas os profissionais envolvidos neste

trabalho, especialmente os intérpretes, os professores e os pesquisadores

conhecem outras realidades, a realidade da surdez, a realidade escolar,

e não podem se calar, sendo responsáveis por dar a conhecer os

limites e os problemas enfrentados nas “cavernas da inclusão”.

Sobre a educação de surdos

A questão da inclusão não é algo que envolve apenas a surdez,

mas se refere a uma reflexão mais ampla da sociedade, buscando formas

de melhor se relacionar com sujeitos de outra cultura, que falam

outra língua, que professam outra fé religiosa, entre outros. Trata-se de

um tema muito debatido atualmente e que busca refletir sobre formas

adequadas de convivência, ampliando os conhecimentos sobre a realidade

cultural do outro, sem restrição ou exigência de adaptação às regras

do grupo majoritário. Trata-se de uma discussão sobre os modos

de convivência dos grupos humanos nas suas diferenças que não é simples

e que não se mostra ainda bem resolvida, seja na esfera política,

religiosa, econômica ou educacional.

Nesse cenário, a educação dos surdos é um tema polêmico que

gera sempre debates acalorados, pois, de um lado, estão o respeito às

questões da diferença lingüística, à identidade surda, e os modos próprios

de relação cultural (apreensão do mundo) que os sujeitos surdos

têm; de outro lado, a preocupação com a inclusão deste grupo na comunidade

majoritária, respeitando suas diferenças e necessidades, mas

atentando para que não se constitua como uma comunidade à parte,

Cad. Cedes, Campinas, vol. 26, n. 69, p. 163-184, maio/ago. 2006 181

Disponível em

Cristina Broglia Feitosa de Lacerda

marginalizada. Este debate acaba se materializando na defesa, de um

lado, de escolas de surdos e, de outro, pela inserção do aluno surdo na

escola de todos.

Os dados deste estudo indicam o quanto um modelo, ainda que

considerado inclusivo por seus participantes, pode não ser nada inclusivo.

O aluno surdo, apesar de presente (fisicamente), não é considerado

em muitos aspectos e se cria uma falsa imagem de que a inclusão é um

sucesso. As reflexões apontam que a inclusão no ensino fundamental é

muito restritiva para o aluno surdo, oferecendo oportunidades reduzidas

de desenvolvimento de uma série de aspectos fundamentais (lingüísticos,

sociais, afetivos, de identidade, entre outros) que se desenvolvem apoiados

nas interações que se dão por meio da linguagem. A não partilha de

uma língua comum impede a participação em eventos discursivos que

são fundamentais para a constituição plena dos sujeitos.

Desse modo, uma inclusão cuidadosa que levasse em conta os

vários aspectos aqui discutidos poderia ser proveitosa para alunos surdos

em níveis mais elevados de ensino, quando já tivessem melhor consolidado

seus conhecimentos de linguagem, sociais e afetivos, entre

muitos outros.

A experiência de inclusão parece ser muito benéfica para os alunos

ouvintes que têm a oportunidade de conviver com a diferença, que

podem melhor elaborar seus conceitos sobre a surdez, a língua de sinais

e a comunidade surda, desenvolvendo-se como cidadãos menos

preconceituosos. Todavia, o custo dessa aprendizagem/elaboração não

pode ser a restrição de desenvolvimento do aluno surdo. Será necessário

pensar formas de convivência entre crianças surdas e ouvintes, que

tragam benefícios efetivos para ambos os grupos.

Assim, para o aluno surdo, que deve cursar o ensino fundamental,

será efetivamente melhor uma escola na qual os conteúdos sejam

ministrados em sua língua de domínio, que ele tenha professores e

companheiros que partilhem com ele a língua de sinais, de modo a poder

se desenvolver o mais plenamente possível, como é oportunizado

para crianças ouvintes no ensino fundamental.

A tarefa é criar espaços educacionais onde a diferença esteja presente,

onde se possa aprender com o outro, sem que aspectos fundamentais

do desenvolvimento de quaisquer dos sujeitos sejam prejudicados. A

escola, para além dos conteúdos acadêmicos, tem espaço para atividades

182 Cad. Cedes, Campinas, vol. 26, n. 69, p. 163-184, maio/ago. 2006

Disponível em

A inclusão escolar de alunos surdos: o que dizem alunos, professores e intérpretes...

esportivas, de lazer, de artes e de criação, nas quais poderiam conviver

crianças com diferentes necessidades, desde que as atividades fossem preparadas

e pensadas para isso. Não se trata de inserir a criança surda nas

atividades propostas para ouvintes, mas de pensar atividades que possam

ser integradoras e significativas para surdos e ouvintes.

Desse modo, este estudo procura revelar problemas implicados

em experiências de inclusão de alunos surdos, ainda que aparentemente

‘bem sucedidas’, indicando a necessidade de pensar um modelo

novo de escola e não de fazer caber o aluno surdo no modelo que já

está ai. Este modelo foi concebido para a semelhança e não para o acolhimento

das diferenças, e se a escola pretende acolher a diferença, ela

precisa ser repensada de modo a respeitar de fato as singularidades,

promovendo espaços de convivência e conhecimento mútuo.

Recebido em outubro de 2005 e aprovado em fevereiro de 2006.

Notas

1. Documentos produzidos em conferência mundial, da qual participaram várias representações

governamentais, além da UNESCO.

2. Breve resumo do mito descrito por Platão, com base no site .

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